quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sermão da planície

Já disseram que da tristeza é que o poeta extrai a matéria-prima para a real beleza. Tendo a concordar. Neste momento em que nos aproximamos da final de mais uma Copa do Mundo onde o escrete canarinho foi eliminado precocemente, podemos nos consolar nas palavras do mestre Drummond aos descrentes:


SERMÃO DA PLANÍCIE
(para não ser escutado)

Bem-aventurados os que não entendem nem aspiram entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade.

Bem-aventurados os que, por entenderem de futebol, não se expõem ao risco de assitir às partidas, pois não voltam com decepção ou enfarte.

Bem-aventurados os que não têm paixão clubista, pois não sofrem de janeiro a janeiro, com apenas umas colherinhas de alegria a título de bálsamo, ou nem isto.

Bem-aventurados os que os que não escala, pois não terão suas mães agravadas, seu sexo contestado e sua integridade física ameaçada, ao saírem do estádio.

Bem-aventurados os que não são escalados, pois escapam de vaias, projéteis, contusões, fraturas, e mesmo da glória precária de um dia.

Bem aventurados os que não são cronistas esportivos, pois não carecem de explicar o inexplicável e racionalizar a loucura.

Bem-aventurados os fotógrafos que trocaram a documentação do esporte pela dos desfiles de moda, pois não precisam gastar tempo infindável para fotografar o relâmpago de um gol.

Bem-aventurados os fabricantes de bolas e chuteiras, que não recebem as primeiras na cara e as segundas na virilha, como os atletas e os assistentes ocasionais das peladas.

Bem-aventurados os que não conseguiram comprar televisão a cores a tempo de acompanhar a Copa do Mundo, pois, assistindo pelo aparelho do vizinho, sofrem sem pagar 20 prestações pelo sofrimento.

Bem-aventurados os surdos, pois não os atinge o estrondar das bombas da vitória, que fabricam outros surdos, nem o matraquear dos locutores, carentes de exorcismo.

Bem-aventurados os que não moram em ruas de torcida institucionalizada, ou em suas imediações, pois só recolhem 50% do barulho preparatório ou comemoratório.

Bem-aventurados os cegos, pois lhes é poupado torturar-se com o espetáculo direto ou televisionado da marcação cerrada, que paralisa os campeões, ou do lance imprevisível, que destrói a invencibilidade.

Bem-aventurados os que nasceram, viveram e se foram antes de 1863, quando se codificaram as leis do futebol, pois escaparam dos tormentos da torcida, inclusive dos ataques cardíacos infligidos tanto pela derrota como pela vitória do time bem-amado.

Bem-aventurados os que, entre a bola e o botão, se contentaram com este, principalmente em camisa, pois se consolam mais facilmente de perder o botão da roupa do que o bicho da vitória.

Bem-aventurados os que, na hora da partida internacional, conseguem ouvir a sonata de Albinoni, pois destes é o reino dos céus.

Bem-aventurados os que não confundem a derrota do time da Lapônia pelo time da Terra do Fogo com a vitória nacional da Terra do Fogo sobre a Lapônia, pois a estes não visita o sentimento de guerra.

Bem-aventurados os que, depois de escutar este sermão, aplicarem todo o ardor infantil no peito maduro para desejar a vitória do selecionado brasileiro nesta e em todas as futuras Copas do Mundo, como faz o velho sermoneiro desencantado, mas torcedor assim mesmo, pois para o diabo vá a razão quando o futebol invade o coração.


* texto publicado no Jornal do Brasil de 18/06/1974



Urubú

Nenhum comentário: